29 de julho, 13h
Papai estava jogado em uma poltrona no canto da sala, cansado, um tipo de xale sobre os ombros dele. Estava sujo. Senti nojo de tocá-lo quando ele me pediu um abraço. Hindley também hesitou, mas o abraçou fracamente. Nelly empurrou-me para papai, eu o toquei fracamente, antes de me afastar para um canto da sala.
Papai sorriu.
– Onde está meu chicote, papai? – exigi ao notar que ele parecia querer cair no sono. Aproximei-me hesitante.
Hindley, outrora sentado em uma cadeira próxima à poltrona de papai, levantou-se rapidamente.
– E a minha rabeca. – exigiu, também.
Papai assentiu, um meio sorriso satisfeito no rosto, e pôs uma mão no bolso, vasculhando-o. Tirou de lá pedaços do que uma vez fora uma rabeca. Entregou-a a Hindley. Este fez uma careta decepcionada, dando-me uma insaciável vontade de rir. Controlei o riso, ele me olhou, estreitando os olhos, com raiva.
– E o seu chicote... – papai tirou um pedaço de pau acabado, o que era a armação do chicote. O resto se perdera.
Fiz um bico zangado, prestes a chorar. Sempre funcionara, por que não agora? Mas papai não ligou, continuou sorrindo, e se levantou, indo até a porta.
– Mas tenho outra surpresa para vocês. – ele disse, girando a maçaneta da porta. – Está no carro.
Animei-me, mas Hindley estreitou os olhos, desconfiado. Ignorei-o e corri até o carro, logo na frente de papai. Abri a porta traseira, alegre...
... e me saiu um garoto, mais ou menos da minha altura, sujo, roupas de mendigo, feio. Parecia não ter tomado banho há anos.
Fiz uma expressão de nojo.
– Eca. – gemi correndo até Nelly, atrás de papai.
Papai riu, me ignorando. Hindley se aproximou hesitante, chutou o garoto. Este gemeu, eu ri alto. Tão feio e nojento... por que papai o trouxe?
– Hindley! – papai empurrou meu irmão, e eu abafei outra gargalhada. Nunca vejo tanta diversão assim.
Papai virou-se para o garoto, colocou-o no colo e começou a andar de volta para casa. Nós o seguimos, hesitantes. Hindley estava de cara amarrada, eu o ignorei.
Papai sentou o menino na poltrona onde ele mesmo estava sentado. Virou-se para nós.
– Estes são seus novos irmãos. – ele disse, sorridente, ao garoto. – Seu novo irmão, Hindley. – apontou Hindley, em um canto da sala, uma careta no rosto. – E esta sua nova irmã, Catherine. – apontou para mim, mais próxima dos dois.
Pisquei, confusa. Este mendigo será o meu novo irmão?!
– Hm, Sr. Earnshaw... – Nelly se aproximou hesitante. Seu olhar para o garoto também era enojado. – O senhor não acha que é meio... precipitado adotar um garoto que o senhor encontrou na rua?
Papai fez uma careta de desagrado.
– O quê?! – ele exclamou. – Ora, Helena, encontrei-o morrendo de fome e miséria nas ruas de Liverpool... não poderia deixá-lo lá! – olhou-o. – Perguntei-lhe onde estava sua família. Ele não tem. Nem nome.
Entreolhamos-nos apreensivos.
– Acabo de dar-lhe um nome. – papai continuou. – Heathcliff. Apenas Heathcliff.
– Heathcliff Earnshaw? – Nelly perguntou.
– Não. Só Heathcliff.
Estou deitada, agora, na cama do meu quarto. Papai perguntou-me se eu poderia querer uma companhia durante a noite. Fiz uma careta, recusando. Aquele mendigo, Heathcliff, nunca iria sequer conseguir uma palavra minha. Nunca.
Levanto a cabeça para olhar através da janela. Os Linton estão brincando lá fora. Parece cada vez mais divertido. Suspiro. Nunca poderiam me deixar ir, ainda mais agora, quando eu tinha um novo irmão.
Nelly também não gosta dele. Hindley também não, obviamente. Apenas papai está satisfeito com ele aqui.
Sinto que, talvez, Hindley e eu, concordando finalmente com algo, possamos nos tornar mais unidos. Apenas um talvez quase sem esperanças. Irei apenas aguardar. Logo saberei, tenho certeza.
31 de julho, 12h30
Acabo de almoçar. Tive a infelicidade de encontrar Heathcliff, o mendigo, sentado à mesa da cozinha, como se fosse da família. Sentei-me de frente para ele, a atenção quase completamente voltada à comida na minha frente.
O mendigo não disse nada durante toda a meia hora em que passamos lá, no mesmo cômodo. Umas duas empregadas lavavam a louça na outra cozinha, eu me satisfazia ouvindo o barulho da água da torneira caindo.
Hindley entrou no cômodo logo antes que eu terminasse o prato. Maltratou Heathcliff com palavras grosseiras e beliscões no braço. Queria irritar o mendigo. Estranhamente, não me diverti assistindo àquilo.
Saí logo depois, subindo até o meu quarto.
Hindley e eu não nos aproximamos, como pensei que acontecesse. Ele não parece mais distante, porém. Parece o mesmo. Mas não me importo. Ainda troco algumas palavras com ele quando nos encontramos. Normalmente ele dá avisos sobre como está o mendigo. Nada de mais. Ignoro-o na maioria das vezes.
Não consigo mais ver os Linton do meu quarto. Vou parar de assistir a cada movimento deles. Perda de tempo.
1º de agosto, 10h
Comecei a assistir os passos de Heathcliff. Tornou-se interessante, após alguns minutos. Estou sentada nos últimos degraus da escada, observando-o na grama através da janela da sala. Ele se levantou, e agora olha fixamente para cá. Sinto um arrepio e sorrio levemente.
Perdi-o de vista. Onde ele se meteu?
Heathcliff apareceu por trás de mim, naquela hora. Arrancou-me o diário das mãos e correu pelo corredor, rindo, divertido, sacudindo o diário sobre a cabeça. Olhei-o com raiva e corri atrás até o último quarto do corredor. Ele conseguiu abrir a porta que eu achava estar trancada. Trancou-me por fora, vociferei e bati na porta, furiosa. Quem ele pensa que é?!, pensei enfurecida.
Ele abriu a porta de uma vez, fazendo-me cair para dentro. Levantei a cabeça, ajeitando-me no chão. Ele sorria marotamente, mas me entregou o diário, o mesmo sorriso irritante no rosto.
– O que você fez?! – gritei com ele, mais enfurecida ainda.
Ele riu abertamente, caindo para trás.
– Achei que você nunca iria dirigir uma palavra a mim, vossa alteza. – ele zombou, divertido com a minha raiva.
Levantei-me, querendo sair do quarto, mas ele me segurou pelo braço, obrigando-me a ficar.
Chutei-o na perna e saí do quarto, correndo de volta para o meu. Eu precisava ver o que ele havia feito com o diário.
Mas ele não havia feito nada. Aparentemente havia apenas lido. Por enquanto, é melhor me manter longe dele. Não será bom correr o risco de ele me enfurecer novamente. Não contarei a Hindley, por ora. Só em casos piores. Bem piores.
02 de agosto, 18h
Encontrei o mendigo no celeiro esta tarde. Ele não almoçou conosco, estranhei. Ele provavelmente passara a tarde lá, mexendo nos cavalos. Aproximei-me lentamente ao vê-lo mexer em meu potro. Corri até lá, tirando suas mãos sujas da bela crina do cavalo.
– Não mexa nele de novo, entendeu? – gritei com ele, enfurecida novamente. – Entendeu?
Ele apenas assentiu, a expressão magoada. Abaixei a cabeça para ele.
– O que houve? – perguntei.
– Nada. – ele afastou minhas mãos e correu para um canto. Começou a mexer em outro cavalo. Minha curiosidade falou alto, nessa hora.
– Qual o seu verdadeiro nome? – perguntei, aproximando-me.
– Não tenho. – ele foi curto e grosso. Fiz uma careta.
– Todos têm que ter um nome. – retruquei.
– Mas eu não tenho. – ele respondeu, ainda mais grosso.
– E a sua família? – zombei. – Não sentirão sua falta?
– Não. Sequer os conheço.
– Que bom. – respondi, entretida na crina do meu potro. – Pelo menos não foi o culpado pela morte da mãe. Ou não tem um irmão que o odeia ferozmente. Ou não tem um pai ausente que só liga para o “novo filho”. – revirei os olhos, aborrecida.
Heahcliff riu, virando-se para mim.
– Quer dizer que não gosta da sua família! – ele riu novamente, um riso sem humor.
– Nunca iria poder gostar. – sorri irônica.
– Ótimo para você! – ele se virou para o cavalo em que mexia. Era o de Hindley.
Abri a boca para avisá-lo sobre o ciúme de Hindley para com o cavalo, mas a fechei no mesmo instante. Não valia a pena avisá-lo. Talvez fosse até melhor ter um pouco mais de diversão. Enganei-me imensamente.
Hindley, por azar, passava por ali naquela hora, para ir até Gimmerton buscar alguma encomenda sua, para a escola. Correu até Heathcliff, furioso, ao vê-lo tocar em seu precioso cavalo.
A cena a seguir não tive coragem de ver. Segundos depois, vi Heathcliff gemendo de dor no chão, sangrando. Tive o curioso impulso de ir até ele, socorrê-lo, mas ele mesmo se levantou rapidamente, lançando um olhar de ódio para meu irmão, que teve o imenso prazer de ignorar. Olhou-me sem expressão e voltou para a casa, sem dizer mais nada.
Hindley saiu logo depois, a expressão satisfeita, enquanto eu voltava para o meu quarto. Vi Nelly aproximar-se de Heathcliff na cozinha, hesitando em tocá-lo e depois afastar-se do mendigo, como se não tivesse visto nada.
Não pude deixar de sorrir.
Agora estou aqui, em meu quarto, esperando papai chegar para ver a cena que ele fará quando Heathcliff contar-lhe o que aconteceu. Espero que Hindley não saia muito ferido da surra que irá levar dentro de alguns minutos. Não sei o que esperar, na verdade. Apenas esperarei ansiosa, como sempre.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
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